terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Memória - Morte de Vaclav Havel

MEMÓRIA 23/12/2011

Vaclav Havel: uma vida dedicada à defesa da democracia
Ex-presidente checo cartografou o final do século XX em análises sobre o poder de pessoas comuns para influenciar a política - ideias mais atuais do que nunca

Vitor Pamplona
ARTIGO DA VEJA

A trajetória de Vaclav Havel é motivo de orgulho para os checos (David W Cerny/Reuters)

Vaclav Havel, cujo corpo será enterrado nesta sexta-feira, liderou a revolução que derrubou quatro décadas de comunismo na antiga Checoslováquia, escreveu 19 peças de teatro, padeceu anos na prisão por sua dissidência política e foi presidente de duas repúblicas por 14 anos, antes e depois do divórcio entre Eslováquia e República Checa, no início da década de 90. Com uma biografia inimitável, menos conhecida do que deveria e tão admirável quanto merecia, tornou-se uma figura de proa na política mundial e um líder idolatrado. As manifestações públicas em Praga e Bratislava desde o anúncio de sua morte, aos 75 anos, domingo passado, são evidências inequívocas de uma personalidade heroica e popular.

"Havel foi uma figura definidora da Europa do final do século XX", escreveu o historiador britânico Timothy Garton Ash, primeiro escritor do Ocidente a prestar atenção no colapso do comunismo na Europa Oriental. "Ele não foi apenas um dissidente; ele foi a epítome do dissidente, como viemos a entender aquele termo novo. Ele não foi apenas o líder da Revolução de Veludo; ele foi o líder da Revolução de Veludo original, aquela que nos deu uma marca aplicada a muitos outros protestos de massa não-violentos desde 1989", destacou ele no jornal inglês Guardian. Mas a autoridade intelectual precede a ressonância revolucionária. Do início da militância política à cadeira de presidente no Castelo de Praga, sede do governo, o dramaturgo delineou em ensaios, cartas e textos políticos uma cartografia do sistema comunista, arquitetou alternativas para chegar a uma democracia autêntica e encorajou movimentos políticos em todos os países que orbitavam a União Soviética a se levantar contra o regime sem disparar um tiro, numa época em que a luta armada - e a literatura política - eram discutidas com o entusiasmo hoje dedicado a ídolos pop e times de futebol.

Fuga do assunto - Um dos primeiros textos de Havel a repercutir a leste do Muro de Berlim foi Sobre o Pensamento Evasivo, que integra a coletânea Open Letters (Cartas Abertas). Escrito originalmente como um discurso à União de Escritores Checoslovacos em 1965, o texto foca o hábito que muitos políticos e intelectuais têm de começar um discurso abordando um fato corriqueiro e terminar discorrendo sobre as perspectivas para o futuro da humanidade, fugindo completamente do assunto. Na Checoslováquia comunista da época, um exemplo era o grupo de "médicos, advogados e auxiliares de escritório" responsável por cuidar dos prédios cujos peitoris das janelas estavam caindo em cima das pessoas. Chamada pelo regime de "manutenção socialista pelos inquilinos", a brigada disfarçava na nomenclatura o fato de que a segurança de moradores e pedestres estava na mão de completos amadores. A lógica do ensaísta era cristalina: "Se é um fato consumado que um aborígene era capaz de alguma forma montar um abrigo que não caísse sobre sua cabeça, também deve ser igualmente um fato consumado que uma sociedade socialista moderna seja capaz de oferecer às pessoas uma passagem segura pelas ruas".

Por décadas, a ideia de criar um partido de oposição ao Partido Comunista seduziu os dissidentes. Havel a defendeu durante a Primavera de Praga, em 1968, como um caminho para uma abertura democrática. Pouco tempo depois, estava descrente da solução, o que explica numa entrevista de 1987: "Eu suspeito que o envolvimento no governo inevitavelmente leva à burocratização, corrupção e perda de democracia. Não me oponho à solidariedade e coesão de vários grupos de pessoas com a mesma opinião. Apenas sou contra qualquer coisa que sirva para ocultar a responsabilidade pessoal ou premiar alguém com privilégios por sua devoção a um grupo particular". Em meio à Primavera de Praga, ele publicou um texto chamado Sobre o Tema de uma Oposição, no qual também analisa a relação entre democracia e opinião pública - com conclusões que se mantém atuais. "A opinião pública (representada pela imprensa, por exemplo) só pode agir como um efetivo controle do governo se também tiver o poder de influenciar o governo. No fim das contas, o poder só ouve o poder e, se é para melhorar o governo, precisamos ser capazes de ameaçar a sua existência, não apenas a sua reputação."

Revoltas árabes mostram como as ideias de Havel continuam mais atuais do que nunca
Pessoas comuns - A intimidação popular à existência de regimes totalitários foi exercitada em 2011, nos países árabes, numa dimensão inédita desde quando o edifício do totalitarismo soviético desabou. Havel, que coincidentemente desaparece no mês de aniversário de 20 anos do fim da União Soviética, dedicou à capacidade das pessoas comuns interferirem na política o seu texto mais influente. O impacto de O Poder dos Sem-Poder pode ser medido no depoimento do ativista Zbygniew Bujak, do movimento sindical polonês Solidariedade, que projetou Lech Walesa, o primeiro sindicalista-presidente da história. No fim dos anos 70, quando o ativismo em reuniões públicas e fábricas parecia não dar resultados na Polônia, Bujak diz que os membros do Solidariedade chegaram a duvidar do que estavam fazendo. "Aí, veio o ensaio de Havel. Lê-lo nos deu o alicerce teórico para nossa ação. Ele manteve nosso ânimo. Nós não desistimos. Quando eu olho para as vitórias do Solidariedade e do Carta 77 (o movimento cívico fundado por Havel na Checoslováquia), vejo nelas um assustador cumprimento das profecias contidas no ensaio."

O que O Poder dos Sem-Poder tinha de profético perdura enquanto lição. O texto é uma análise profunda da natureza dos regimes comunistas. Havel não os considerava ditaduras comuns porque, entre outras coisas, exigiam uma ideologia precisa, estruturada, compreensível por todos, tão completa e elaborada que beirava quase uma religião laica. Numa parábola, o escritor checo expôs as fissuras do sistema. A cena é de um verdureiro que todos os dias coloca na vitrine da sua quitanda, em meio às "cebolas e cenouras", um cartaz com o slogan "Trabalhadores do mundo, uni-vos!". O que o verdureiro queria expressar, na verdade, segundo Havel, era: "Eu, o verdureiro fulano, moro aqui e sei o que devo fazer. Eu me comporto da maneira esperada. Eu sou confiável e estou acima de qualquer suspeita. Eu sou obediente e, portanto, tenho o direito de ser deixado em paz".

Por trás da crença nas palavras do lema comunista, escondia-se a ideologia. Lutando contra ela nos mínimos detalhes da vida cotidiana, defendia Havel, o pilar que sustentava o sistema iria finalmente ruir. A ideologia era a mentira e Vaclav Havel convocava a viver na verdade, negando todos os rituais e falsas demonstrações de fidelidade política, com o propósito de minar a harmonia aparente exigida pelo sistema. Timothy Garton Ash resume a essência do poder que não habita os palácios: "Havel captou o insight fundamental no qual toda resistência civil se nutre: que mesmo os regimes mais opressivos dependem de uma aceitação mínima por parte das pessoas que eles governam".

Vaclav Havel tinha 75 anos
Não-violência - Negar a visão ideológica do mundo, pela qual os governos totalitários justificam sua existência, nunca foi na luta política de Vaclav Havel o primeiro passo para o confronto com os fuzis e tanques do regime. "A atitude dissidente é e precisa ser fundamentalmente hostil à noção de mudança violenta", defendia. Ele não acreditava que mudanças no governo - por serem consideradas "fundamentais" - justificassem o sacrifício de coisas "menos fundamentais", como vidas humanas. Em muitos trechos de sua obra, Havel contrapunha os propósitos do totalitarismo aos da vida real, vendo na opressão um movimento contrário à própria natureza. "Enquanto a vida, em sua essência, se move em direção à pluralidade, diversidade, auto-constituição independente e auto-organização, em suma, para preencher sua própria liberdade, o sistema pós-totalitário exige conformidade, uniformidade e disciplina", comparou.

Enquanto dissidente com uma voz ouvida e temida, sua vida real foi demarcada pelos anos que passou na prisão, período retratado em Cartas para Olga, livro que reúne a correspondência para a sua primeira mulher, Olga Havlova. Nele, o analista político e orquestrador de revoluções faz concessão ao amor, à descrição de seu carcereiro, simpatizante do nazismo, e ao que pensava da vida. "Quando uma pessoa escolhe assumir uma certa posição, quando inspira algo para a própria vida, isso lhe dá perspectiva, esperança, propósito." Havel manteve sua posição calma e obstinadamente até derrotar seus opressores. Encarcerado, endereçou à mulher a explicação: "Manter-se numa posição silenciosamente e constantemente significa mais do que gritá-la para fora e, então, rapidamente abandoná-la. Alguém silencioso, que não se pode prever quando vai falar, embora seja certo que quando falar será mais claro do que o bater de um sino, é muito mais capaz de perturbar o mundo".

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